segunda-feira, 2 de novembro de 2020

O campinho da Dona Pina

Uma de minhas características é o saudosismo. Sou saudosista, de lugares, de pessoas, de situações. Por vezes volto no meu passado, e não só nas lembranças. 

Gosto de caminhar por ruas, por bairros, por lugares ligados à minha memória. As casas onde já morei, as escolas onde estudei, as esquinas onde namorei. Dá para ouvir os sons de velhos tempos, reviver rostos, alegrias, acontecimentos, saudades.

Na última de minhas andanças estava eu pelo antigo bairro onde passei infância e adolescência. Reparei no mercadinho da esquina. Caramba, esse lugar é um mercadinho há mais de 40 anos. A padaria também. O botequim da outra esquina, incrível, mas nunca deixou de ser um botequim. Em bairro antigo, coisas antigas sobrevivem.

Ou quase.

Subindo por uma rua no alto do bairro, me deparo com um conjunto interminável de pequenos condomínios de predinhos novos, daqueles quase todos iguais. Quem não conhece a rua pensa que é um lugar novo. Mas é rua antiga, novos são os predinhos.

Antigamente ali era um campo aberto, com terrenos baldios e umas duas ou três chácaras. Uma delas, quase de esquina, era a chácara da Dona Pina, vendedora de bolão. Aqui onde vivo é bolão, mas há quem conheça por chupi-chupi, gelinho, raspadinha. 

Naquele tempo a chácara era longe, fora do conjunto de casas. Mas o bolão valia a caminhada. E não só o bolão. Nos fundos da chácara havia um campinho de futebol. O campinho da Dona Pina. Lendário. Inesquecível

Para jogar lá bastava deixar uns trocados com a Dona Pina. Era o preço de um bolão por pessoa. Sábados pela manhã ou à tarde, era só juntar uma dúzia de moleques e partir para a Dona Pina. O campinho era fantástico porque era realmente pequeno e, em alguns pontos do campo, montes de terra feitos por formigueiros atuavam às vezes como zagueiros, às vezes como atacantes, desviando bolas decisivas.

Quem já jogou no campo da Dona Pina nunca mais vai esquecer.

Havia aqueles que tentavam jogar sem dar aquela justa molhada na mão da Dona Pina. Vazavam a cerca viva de bambu e mato que cercava o local e começavam o jogo. Durava pouco, pois lá vinha a Dona Pina com a vassoura na mão expulsando os invasores.

Sem pagar, nada feito. 

Mas o tempo passou. Um dia a Dona Pina se foi e o lugar também. Certamente vendido para as construtoras que iniciaram a ocupação daquela rua cheia de terrenos e chácaras.

Imagino que a empresa que destruiu o campinho não tinha a menor ideia do que aquilo ali significava para uma centena de jovens. Foi-se o campinho, os formigueiros, a Dona Pina e o tempo.

O tempo.

domingo, 5 de abril de 2020

As aventuras de Zé Colodino: A taboca salvadora



Há muito tempo, quando era nas fazendas que a vida se desenrolava, nas caçadas, nas pescarias, nas conversas à luz do candeeiro após a lida do dia, viveu uma figura única, Zé Colodino.

Eu, de menino, o conheci, levado por meu avô. Nessa época, Zé Colodino, entrado na idade, já morava na cidade, aposentado da lida, em uma casa com uma varanda fresca e um grande quintal aos fundos ali para os lados da antiga estação.

Convivi pouco com a figura, talvez uma dúzia de vezes, sempre levado pelo meu avô que com ele havia convivido em uma das últimas vezes que ambos habitaram uma fazenda como meeiros e, assim, se tornaram compadres.

Mas essas poucas vezes já bastaram para que algumas das histórias contadas na varanda fresca fizessem parte do meu imaginário. Entre elas, essa: a taboca salvadora.

As caçadas lá pelas bandas da mata do Capão eram o passatempo favorito nos fins de tarde. E não era qualquer caçada. Dali podia se obter de um tudo, de um simples tatu peba a um bando de codorna, um cateto e até uma onça.

É certo que onça, onça mesmo, nunca tinha acontecido, no máximo, uma vez, uma jaguatirica miúda, mas a onça constava do cardápio.

Foi assim que, acompanhado de um compadre e de seus companheiros de caçada Perigosa e Corisco, uma cadela bragada destemida e um vira-lata preto de faro infalível, Zé Colodino saiu naquele fim de tarde para caçar.

E entraram picada adentro, Corisco na frente, cheirando o terreno, e Perigosa ao lado de Zé Colodino com a garrucha 44 cano duplo e o facão guarani presos no cinto junto de um embornal e uma cabaça para recolher água.

A mata do Capão, de enormes proporções e nunca antes atravessada, já era assustadora durante o dia, à noite, então, nem se fala. Devido aos perigos naturais e sobrenaturais que nela se escondiam, eram poucos que dela se aproximavam. O medo da onça era algo sempre presente, mas quase nunca falado. E, pela cara cada vez mais branca e os olhos arregalados do compadre, esta era a sua primeira vez e a aventura ainda nem tinha começado.

A caçada consistia em, nas palavras de Zé Colodino, "bordejar" a mata do Capaõ na passagem do dia para a noite à procura da caça, ou dos bichos que iam dormir ou dos que saíam para a vigília noturna. Zé Colodino ia "assobiano" até que Corisco dava o sinal, parando subitamente de orelha em pé e olhando na direção de alguma coisa.

Todos se agachavam cuidadosamente, inclusive Perigosa, sem ruído. Se fosse bicho que voava, a garrucha resolvia, se fosse bicho que corria, era só gritar "vai, Perigosa!" e a caçada ganhava corpo. E foi assim mesmo.

Corisco parou na trilha, orelha em pé. Perigosa se agachou perto de Zé Colodino. O compadre, já arrependido, se agachou um pouco mais para trás rezando baixinho para que fosse um tatu ou uma codorna. "Deus me livre da onça" dizia nos seus pensamentos.

Era um casal de cateto. "Vai, Perigosa!". E a caçada começou. Os catetos dispararam mato adentro com os cachorros atras. Zé Colodino entrou pela picada e sumiu no mato. O compadre, para não ficar sozinho, correu também.

Na mata estava quase tudo escuro mas com alguma sorte, seguindo os latidos e rosnados dos cachorros, o compadre encontrou o lugar onde Perigosa guardava o cateto abatido junto com Corisco. A banha e a carne da semana estavam garantidos mas, onde estava o Zé Colodino?

O estouro do tiro da garrucha uns 50 metros dali respondeu às indagações do compadre. Com dificuldade e podando o mato, o compadre foi se aproximando dos gemidos que ficavam cada vez mais nítidos. "Ai, ai...".

Era o Zé Colodino. Com o corpo quase todo dentro de uma moita de taboca.

"Que foi, Zé?", perguntou um trêmulo compadre.

"Me ajuda...".

Zé Colodino estava preso pelas costas, na altura do pulmão. Usando o canivete, o compadre conseguiu livrar Zé Colodino daquilo que o prendia. Mesmo sangrando mas sem tempo para conversa, pegaram o porco e voltaram.

Na sala de casa, já com a ferida nas costas cuidada, Zé Colodino exibia para todos a unha do tamanduá-bandeira que quase o matou.

Ao entrar na mata, Zé Colodino se desviou da trilha dos cachorros e caiu numa touceira de taboca por cima do tamanduá-bandeira. O bicho deu nele o abraço mortal e a unha de 20 centímetros só não furou o seu pulmão porque, por sorte, atravessou antes um gomo da taboca e não entrou toda na carne do caçador.

Com o facão guarani, Zé conseguiu cortar a unha do bicho que fugiu para dentro do mato, mas a dor e a posição o impediam de sair do lugar. Ficou lá espetado pelas costas até a chegada do compadre.

Ao final da história imperou o silêncio. Eu não sei como estava a minha cara, mas sei que o Zé Colodino olhou para mim e para o meu avô, deram uma risada cúmplice e o Zé se levantou e entrou na casa. Voltou para a varanda, estendeu a mão aberta na minha direção e estava lá, a unha do tamanduá-bandeira.

"Quer ver mais?"

Nem lembro a minha resposta mas ao retirar a camisa estava também lá a marca nas costas, na altura do pulmão.

No retorno para casa eu não disse nada, muito menos o meu avô que demostrava estar distraído pensando sei lá no que. Só sei que a história do Zé Colodino, a unha do tamanduá e aquela marca nas costas nunca mais saíram da minha memória.

sábado, 25 de janeiro de 2020

1989 - o gol que eu não fiz





Ah, as histórias de futebol. Tantas são elas, todas da infância. Aliás, nem todas, algumas nos acompanham mesmo após muitos anos.

Em uma tarde quente do ano de 2013 ou 2014, não sei precisar ao certo, eu caminhava pelo centro da cidade quando vi uma figura sentada em um bar. Já bem mais velho, como eu, mas perfeitamente reconhecível. Era ele, o Cotia, o maior artilheiro que eu já havia conhecido.

Há quanto tempo não o via? 15, 20 anos? Sei lá.