sábado, 30 de agosto de 2025

1982

 


Em minhas memórias, o ano de 1982 é um conjunto de fragmentos se entrelaçam com o sabor da infância e a essência do amor que nos rodeia. Recordo-me da escola Antônio Diederichsen, nos Campos Elíseos. Foi naquelas salas de aula que conheci o primeiro amor, um amor inocente, imutável, que me ensinou os sussurros do coração e as promessas não cumpridas de uma adolescência que ainda estava a anos de distância. 

A mais viva memória que tenho é que saía mais ou menos na hora do almoço e andava uns cinquenta passos para chegar em casa. Ainda na calçada já era possível sentir o cheiro da comida da minha mãe.

As tardes eram ensolaradas, banhadas pela luz dourada de uma infância livre. O cheiro da terra fresca misturava-se ao doce aroma da sorveteria na esquina, onde os sabores se deslizavam como segredos entre os amigos. A casa da rua Goiás era um refúgio mágico. Uma mangueira majestosa no quintal se erguia como um guardião das minhas aventuras, suas folhas sussurrando histórias de crianças que, como eu, sonhavam com o mundo.

Mas, em meio a esse cenário de felicidade, havia um ponto de luz e sombra que sempre brilhará em minha lembrança: minha avó Cida. O último aniversário de sete anos ao seu lado é uma imagem nítida nas minhas recordações. Ao redor do bolo, a risada dela ecoava, e a amorosidade em seus olhos era o maior presente que eu poderia ter recebido. Aquele dia em especial transbordava alegria, mas eu não sabia que seria o último a receber seus abraços calorosos, suas palavras cheias de amor e proteção.

Enquanto eu contava as velas e fazia pedidos, meu pai se afastava em uma pescaria no rio Araguaia, numa busca solitária de rememorações ou talvez uma fuga das realidades da vida. Não me lembro de quantos dias ele ficou longe;mas para mim, esses momentos se tornaram uma interrogação, um eco de perguntas que nunca foram respondidas. Essa ausência constante moldou uma compreensão tardia — porque a ideia de um casal de pai e mãe como referência era uma miragem que nunca se concretizaria.

Às vezes, volto aos Campos Elíseos na minha mente, onde as lembranças dançam entre as árvores e as ruas, entre sorrisos e a saudade. É um lugar que não existe mais, mas que habita meu coração, repleto de risos infantis e o calor de um amor que nunca se apagou. O tempo pode ter me afastado da casa da rua Goiás e da escola Antônio Diederichsen, mas a essência daquele ano de 1982, com sua mistura de alegria e perda, permanece viva dentro de mim, pulsando como um coração inquieto que se recusa a esquecer.

Ao olhar para trás, percebo que cada lembrança é um fio que tece o tecido da minha vida. A escola, com suas paredes que testemunharam sonhos e desilusões; a mangueira, que oferecia sombra nos dias quentes e abrigo nas tempestades; e o sabor do sorvete que derretia rapidamente, como os momentos que escapam entre os dedos. Cada elemento era uma peça do quebra-cabeça emocional que formava minha infância, e eu era apenas um menino tentando compreender o mundo à sua volta.

A vida, com suas ironias e surpresas, me ensinou lições que naqueles tempos eu não podia sequer imaginar. A ausência de um pai e uma mãe juntos me lançou em um mar de incertezas, um espaço onde as respostas se escondiam nas brumas da minha infância. Mas, mesmo assim, encontrei amor onde pude. Amizades que se tornaram laços fortes, e a sabedoria silenciosa de minha avó, que ainda ecoa em minha mente, guiando-me em momentos difíceis.

Como eu gostaria de ter mais tempo ao seu lado. De ouvir suas histórias, de aprender ainda mais com seu sorriso gentil e suas mãos enrugadas que sempre tinham algo precioso para oferecer. Mas, em vez disso, aprendi a carregar suas lições como um manto — a importância da família, da resiliência e do amor, que, mesmo em sua ausência, nunca me abandonou.

Agora, com o passar dos anos, percebo que a nostalgia não apenas me liga ao passado, mas também me impulsiona a viver intensamente o presente. O eco dos risos infantis que ainda ressoam nas ruas e a fragância da manga madura no quintal são lembretes do que realmente importa. Aprendi que, mesmo que o tempo leve pessoas queridas e momentos preciosos, as memórias permanecem como estrelas em um céu infinito, iluminando o caminho da nossa jornada.

1982 foi um ano de descobertas, e enquanto as folhas da mangueira dançavam ao vento, eu também dançava — não apenas entre os sonhos de uma criança, mas entre as memórias de amor que moldaram o que sou hoje. O menino que viveu nos Campos Elíseos, cercado de risadas e sorrisos, é, afinal, um capítulo fundamental da minha história, que ainda está sendo escrita, com tinta de saudade e amor.

Ah, e foi em 1982 que eu senti pela primeira vez como o futebol se mistura à vida das pessoas. Lembro-me nitidamente o dia da derrota da seleção para a Itália e todas as pessoas da rua vivendo a tristeza e comentando o fato, dos frequentadores do bar da esquina às donas de casa que só se interessavam por futebol na s copas do mundo.


Ricardo Jimenez

quinta-feira, 2 de dezembro de 2021

1981 - comecinho de vida

 


No início de uma tarde ensolarada de 1981, minha mãe me deixou na "Escolinha Comecinho de Vida", um pequeno refúgio na esquina da rua Goiás com a avenida da Saudade onde minhas primeiras memórias começaram a se moldar. Ao cruzar as portas daquele lugar, fui imediatamente envolvido pela ansiedade e pela confusão de estar longe de casa. O choro brotou involuntário, um eco de insegurança diante do desconhecido. Mas, aos poucos, aquele espaço foi se transformando.

Os dias seguintes eram marcados por novas aventuras: aulas animadas de natação que me ensinaram a flutuar e a me deixar levar pela água, sessões de judô que despertavam em mim um sentido de disciplina e respeito. Recordo com carinho da professora, gentil e paciente, que se dedicava a me ajudar a formar minhas primeiras letras, um verdadeiro rito de passagem para a nova vida que se abria diante de mim. 

O caminho de ida e volta se tornou uma jornada de descobertas. Cada passo era uma oportunidade de observar o mundo ao meu redor: as casas com suas cores vibrantes, os rostos familiares das pessoas que cruzavam meu caminho. A beleza da Igreja Santo Antônio, com suas paredes de tijolo à vista, deixava uma marca indelével em minha memória, um símbolo de uma época simples e cheia de significados.

As sextas-feiras eram particularmente mágicas, quando a feira da Rua Goiás pulsava com vida e aromas. O cheiro do pastel quentinho se misturava à doçura da garapa fresca, uma combinação que trazia um sorriso ao meu rosto e aquecia meu coração. Naquelas tardes, o movimento frenético da Avenida da Saudade se tornava quase musical, com risadas, conversas e a agitação do cotidiano envolvendo a escolinha como uma dança harmoniosa da vida.

Hoje, a Escolinha Comecinho de Vida não existe mais, mas a sua essência permanece viva em minhas lembranças. Era um tempo de grandes descobertas, onde tudo era novidade e cada dia trazia consigo a promessa de uma nova aventura. Reviver esses momentos é mergulhar em um mar de nostalgia, onde a pureza da infância se entrelaça com a beleza das memórias, eternizando um capítulo especial da minha vida.


domingo, 28 de novembro de 2021

1979

 Ninguém tem memória ativa de fatos que ocorreram quando se tinha 4 anos de idade. O que se tem são pedaços de memória. Como a cena de um menino na calçada em frente de casa no dia do seu aniversário fazendo o número 4 com os dedos para afirmar a si próprio a passagem do tempo. 

segunda-feira, 2 de novembro de 2020

O campinho da Dona Pina

Uma de minhas características é o saudosismo. Sou saudosista, de lugares, de pessoas, de situações. Por vezes volto no meu passado, e não só nas lembranças. 

Gosto de caminhar por ruas, por bairros, por lugares ligados à minha memória. As casas onde já morei, as escolas onde estudei, as esquinas onde namorei. Dá para ouvir os sons de velhos tempos, reviver rostos, alegrias, acontecimentos, saudades.

Na última de minhas andanças estava eu pelo antigo bairro onde passei infância e adolescência. Reparei no mercadinho da esquina. Caramba, esse lugar é um mercadinho há mais de 40 anos. A padaria também. O botequim da outra esquina, incrível, mas nunca deixou de ser um botequim. Em bairro antigo, coisas antigas sobrevivem.

Ou quase.

Subindo por uma rua no alto do bairro, me deparo com um conjunto interminável de pequenos condomínios de predinhos novos, daqueles quase todos iguais. Quem não conhece a rua pensa que é um lugar novo. Mas é rua antiga, novos são os predinhos.

Antigamente ali era um campo aberto, com terrenos baldios e umas duas ou três chácaras. Uma delas, quase de esquina, era a chácara da Dona Pina, vendedora de bolão. Aqui onde vivo é bolão, mas há quem conheça por chupi-chupi, gelinho, raspadinha. 

Naquele tempo a chácara era longe, fora do conjunto de casas. Mas o bolão valia a caminhada. E não só o bolão. Nos fundos da chácara havia um campinho de futebol. O campinho da Dona Pina. Lendário. Inesquecível

Para jogar lá bastava deixar uns trocados com a Dona Pina. Era o preço de um bolão por pessoa. Sábados pela manhã ou à tarde, era só juntar uma dúzia de moleques e partir para a Dona Pina. O campinho era fantástico porque era realmente pequeno e, em alguns pontos do campo, montes de terra feitos por formigueiros atuavam às vezes como zagueiros, às vezes como atacantes, desviando bolas decisivas.

Quem já jogou no campo da Dona Pina nunca mais vai esquecer.

Havia aqueles que tentavam jogar sem dar aquela justa molhada na mão da Dona Pina. Vazavam a cerca viva de bambu e mato que cercava o local e começavam o jogo. Durava pouco, pois lá vinha a Dona Pina com a vassoura na mão expulsando os invasores.

Sem pagar, nada feito. 

Mas o tempo passou. Um dia a Dona Pina se foi e o lugar também. Certamente vendido para as construtoras que iniciaram a ocupação daquela rua cheia de terrenos e chácaras.

Imagino que a empresa que destruiu o campinho não tinha a menor ideia do que aquilo ali significava para uma centena de jovens. Foi-se o campinho, os formigueiros, a Dona Pina e o tempo.

O tempo.

domingo, 5 de abril de 2020

As aventuras de Zé Colodino: A taboca salvadora



Há muito tempo, quando era nas fazendas que a vida se desenrolava, nas caçadas, nas pescarias, nas conversas à luz do candeeiro após a lida do dia, viveu uma figura única, Zé Colodino.

Eu, de menino, o conheci, levado por meu avô. Nessa época, Zé Colodino, entrado na idade, já morava na cidade, aposentado da lida, em uma casa com uma varanda fresca e um grande quintal aos fundos ali para os lados da antiga estação.

Convivi pouco com a figura, talvez uma dúzia de vezes, sempre levado pelo meu avô que com ele havia convivido em uma das últimas vezes que ambos habitaram uma fazenda como meeiros e, assim, se tornaram compadres.

Mas essas poucas vezes já bastaram para que algumas das histórias contadas na varanda fresca fizessem parte do meu imaginário. Entre elas, essa: a taboca salvadora.

As caçadas lá pelas bandas da mata do Capão eram o passatempo favorito nos fins de tarde. E não era qualquer caçada. Dali podia se obter de um tudo, de um simples tatu peba a um bando de codorna, um cateto e até uma onça.

É certo que onça, onça mesmo, nunca tinha acontecido, no máximo, uma vez, uma jaguatirica miúda, mas a onça constava do cardápio.

Foi assim que, acompanhado de um compadre e de seus companheiros de caçada Perigosa e Corisco, uma cadela bragada destemida e um vira-lata preto de faro infalível, Zé Colodino saiu naquele fim de tarde para caçar.

E entraram picada adentro, Corisco na frente, cheirando o terreno, e Perigosa ao lado de Zé Colodino com a garrucha 44 cano duplo e o facão guarani presos no cinto junto de um embornal e uma cabaça para recolher água.

A mata do Capão, de enormes proporções e nunca antes atravessada, já era assustadora durante o dia, à noite, então, nem se fala. Devido aos perigos naturais e sobrenaturais que nela se escondiam, eram poucos que dela se aproximavam. O medo da onça era algo sempre presente, mas quase nunca falado. E, pela cara cada vez mais branca e os olhos arregalados do compadre, esta era a sua primeira vez e a aventura ainda nem tinha começado.

A caçada consistia em, nas palavras de Zé Colodino, "bordejar" a mata do Capaõ na passagem do dia para a noite à procura da caça, ou dos bichos que iam dormir ou dos que saíam para a vigília noturna. Zé Colodino ia "assobiano" até que Corisco dava o sinal, parando subitamente de orelha em pé e olhando na direção de alguma coisa.

Todos se agachavam cuidadosamente, inclusive Perigosa, sem ruído. Se fosse bicho que voava, a garrucha resolvia, se fosse bicho que corria, era só gritar "vai, Perigosa!" e a caçada ganhava corpo. E foi assim mesmo.

Corisco parou na trilha, orelha em pé. Perigosa se agachou perto de Zé Colodino. O compadre, já arrependido, se agachou um pouco mais para trás rezando baixinho para que fosse um tatu ou uma codorna. "Deus me livre da onça" dizia nos seus pensamentos.

Era um casal de cateto. "Vai, Perigosa!". E a caçada começou. Os catetos dispararam mato adentro com os cachorros atras. Zé Colodino entrou pela picada e sumiu no mato. O compadre, para não ficar sozinho, correu também.

Na mata estava quase tudo escuro mas com alguma sorte, seguindo os latidos e rosnados dos cachorros, o compadre encontrou o lugar onde Perigosa guardava o cateto abatido junto com Corisco. A banha e a carne da semana estavam garantidos mas, onde estava o Zé Colodino?

O estouro do tiro da garrucha uns 50 metros dali respondeu às indagações do compadre. Com dificuldade e podando o mato, o compadre foi se aproximando dos gemidos que ficavam cada vez mais nítidos. "Ai, ai...".

Era o Zé Colodino. Com o corpo quase todo dentro de uma moita de taboca.

"Que foi, Zé?", perguntou um trêmulo compadre.

"Me ajuda...".

Zé Colodino estava preso pelas costas, na altura do pulmão. Usando o canivete, o compadre conseguiu livrar Zé Colodino daquilo que o prendia. Mesmo sangrando mas sem tempo para conversa, pegaram o porco e voltaram.

Na sala de casa, já com a ferida nas costas cuidada, Zé Colodino exibia para todos a unha do tamanduá-bandeira que quase o matou.

Ao entrar na mata, Zé Colodino se desviou da trilha dos cachorros e caiu numa touceira de taboca por cima do tamanduá-bandeira. O bicho deu nele o abraço mortal e a unha de 20 centímetros só não furou o seu pulmão porque, por sorte, atravessou antes um gomo da taboca e não entrou toda na carne do caçador.

Com o facão guarani, Zé conseguiu cortar a unha do bicho que fugiu para dentro do mato, mas a dor e a posição o impediam de sair do lugar. Ficou lá espetado pelas costas até a chegada do compadre.

Ao final da história imperou o silêncio. Eu não sei como estava a minha cara, mas sei que o Zé Colodino olhou para mim e para o meu avô, deram uma risada cúmplice e o Zé se levantou e entrou na casa. Voltou para a varanda, estendeu a mão aberta na minha direção e estava lá, a unha do tamanduá-bandeira.

"Quer ver mais?"

Nem lembro a minha resposta mas ao retirar a camisa estava também lá a marca nas costas, na altura do pulmão.

No retorno para casa eu não disse nada, muito menos o meu avô que demostrava estar distraído pensando sei lá no que. Só sei que a história do Zé Colodino, a unha do tamanduá e aquela marca nas costas nunca mais saíram da minha memória.

sábado, 25 de janeiro de 2020

1989 - o gol que eu não fiz





Ah, as histórias de futebol. Tantas são elas, todas da infância. Aliás, nem todas, algumas nos acompanham mesmo após muitos anos.

Em uma tarde quente do ano de 2013 ou 2014, não sei precisar ao certo, eu caminhava pelo centro da cidade quando vi uma figura sentada em um bar. Já bem mais velho, como eu, mas perfeitamente reconhecível. Era ele, o Cotia, o maior artilheiro que eu já havia conhecido.

Há quanto tempo não o via? 15, 20 anos? Sei lá.